janeiro 18, 2006

Rifa-se Coração


Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração malandro que insiste em pregar partidas em seu dono.

Rifa-se um coração que, na realidade está um pouco usado,
meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos, e cultivar ilusões.
Um pouco inconsequente, que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado, coração que acha que Tim Maia estava certo
quando escreveu …
"não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu espero..."
Um idealista...
Um verdadeiro sonhador...

Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, que mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural..
Um coração insensato que comanda o racional, sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras.

Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga e se expõe.
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.

Rifa-se este desequilibrado emocional, que abre sorrisos tão largos que quase dá para engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver intensamente
e contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções.

Rifa-se um coração tão inocente, que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu dono.
Um coração que, quando parar de bater, ouvirá o seu dono dizer para São Pedro,
na hora da prestação de contas:
"O Senhor poderá conferir, eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer, e se recusa a envelhecer..."

Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu dono.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconsequente.

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adoptado, provavelmente,
por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo.

Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence o seu usuário a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.

Clarice Lispector

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